segunda-feira, 5 de março de 2012

Sobre o Primado da Escrita

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SOBRE O PRIMADO DA ESCRITA

[31/07/2008, in Revista Autor]

por António Emiliano

A propósito da recente querela ortográfica, tem-se lido e ouvido na boca de diversos acordistas afirmações que exprimem algum desdém retrógrado (não posso qualificar de outro modo, como tentarei adiante explicar) pela língua escrita, como se esta fosse um sub-produto da oralidade, bem como afirmações sobre a primazia da ‘pronúncia’, como se a língua oral fosse a primordial e fundamental manifestação do saber linguístico dos falantes.

Com esse tipo de afirmações, pouco informadas, pretende-se

1) mostrar que as mudanças introduzidas pelo Acordo Ortográfico de 1990 (AO) na língua portuguesa escrita são de pouca monta, porque a ortografia é como ‘a maquilhagem para as mulheres’, como estultamente afirmou alguém com responsabilidades reitorais num colóquio recente sobre o AO (com reitores como este e outros, que dizem despudoradamente e em público disparates deste jaez é fácil entender o pântano cultural e académico em que o País se encontra), e

2) desacreditar cientificamente aqueles que se opõem a mudanças na ortografia de 1945, que se pode, com propriedade, designar como euro-afro-asiático-oceânica.


1. Primado funcional da escrita

Historicamente, a escrita é uma invenção: é uma tecnologia (cujo uso depende de outras tecnologias). A Humanidade falou durante muitas dezenas de milhares de anos antes de escrever. Também cada um de nós falou antes de escrever.

Quando se estuda a escrita, seja numa perspectiva etológica, ecológica, antropológica ou linguística — e felizmente temos já décadas de saber acumulado sobre estas matérias, que a generalidade dos acordistas parece ignorar — o que conta não é a sua dimensão histórica ou o seu carácter de significante de 2.ª geração, mas sim o seu ‘carácter funcional’.

Ou seja, e em termos simples, o estatuto que à escrita é atribuído numa sociedade altamente alfabetizada e textualizada (e, concomitantemente o papel que ela aí desempenha) é a real medida da sua importância. Do seu primado.

É certo que todos falámos antes de saber escrever e ler, mas mais certo é que quando aprendemos a escrever (bem) e a ler (bem) entrámos num admirável mundo novo construído com letras — aquilo que David Olson, um dos mais reputados especialistas em literacia, designou “the world on paper”. O acesso ao mundo vertido em papel pressupõe alterações no cérebro e aquisição de capacidades motoras e cognitivas novas, seja para segurar num lápis, seja para ‘teclar’ num computador ou num telemóvel, seja para reconhecer instantânea e globalmente uma palavra. Entre um humano alfabetizado e um não alfabetizado há um fosso cognitivo abissal, sabe-se hoje.

A escrita é a expansão externa da memória de cada um dos membros de uma comunidade alfabetizada e da comunidade inteira, como escreveu Merlin Donald em “Origins of the Modern Mind” (obra de referência miseravelmente assassinada entre nós numa inqualificável tradução intitulada “Origens do Pensamento Moderno”, e publicada — incompreensivelmente — pela Fundação Calouste Gulbenkian): com a implantação da escrita e da literacia (mesmo que de forma restrita), o acervo cultural (mítico, religioso, histórico, jurídico, tradicional, experiencial) de uma comunidade já não tem que ser transmitido de boca a orelha de geração em geração, já não tem que ser constantemente aprendido e recriado no processo de memorização; com a escrita, a memória da comunidade é virtualmente infinita e está sempre disponível, de forma fixa e imutável.

No seu tratado “Da Interpretação”, Aristóteles escreveu, nas considerações iniciais, que «as palavras faladas são símbolos da experiência mental e as palavras escritas são os símbolos das palavras faladas». A perspectiva aristotélica condicionou, de forma negativa, o início da reflexão científica sobre a escrita no século XX; ainda hoje subsiste esta visão simplista e datada do estatuto funcional e representacional da escrita.


2. Nenhuma ortografia existe no vazio

Ora, a língua escrita não é, de facto, apenas um sistema simbólico de 2.ª ordem, como cria Aristóteles: a língua escrita, é, antes de tudo, ‘língua’, e nenhuma tradição de escrita e nenhuma ortografia existe no vazio.

Antropologicamente, a literacia é uma prática local que se insere sempre num contexto social e cultural e que tem uma história, i.e., uma dimensão tradicional. A aquisição da literacia altera de forma permanente e vincada a inscrição dos falantes na comunidade e no mundo: melhor, a literacia acarreta uma mudança radical na estrutura das comunidades, nas relações sociais (presenciais ou diferidas) e no próprio mundo. O ‘mundo em papel’ não é menos substancial ou ‘real’ que o mundo natural: é um plano ontológico que condiciona a percepção e até a estruturação do mundo natural. Sem literacia não há Estado, não há civilização, não há nação, não há filosofia, não há ciência, não há tecnologia industrial e não há memória social e cultural de longo prazo. Sem escrita o mundo que habitamos seria infinitamente mais pequeno, pois a troca de informação reduzir-se-ia à esfera das relações inter-pessoais presenciais. Sem escrita, não haveria religiões do Livro nem haveria discurso científico e filosófico. Compreender o primado da escrita é essencial para entendermos o mundo em que habitamos, que, para lá da realidade física e tridimensional em que nos movemos, é um mundo feito de letras, papel e bytes.

A ortografia fornece um sistema normalizado de codificação da memória externa da comunidade linguística: a sua estabilidade é um factor importante de coesão social e cultural, pelo que é ‘natural’ que em sociedades que atingem um determinado grau de complexidade surjam ortografias e normas linguísticas cultas.

Tem, assim, razão quem se insurge contra a monstruosidade que é o Acordo Ortográfico de 1990, alegando que o mesmo acarreta lesões para a língua portuguesa, porque a ortografia é parte integrante da língua: entendamo-nos, a língua não é primeiro oralidade, e só depois escrituralidade.


Escrituralidade e oralidade são media autónomos de manifestação do saber linguístico, mas numa sociedade como a nossa, com omnipresença da escrita — vivemos rodeados de letras e de texto, nos espaços públicos e privados, nos objectos mais insignificantes que usamos ou possuímos, na roupa que vestimos, nos contratos que celebramos, no dinheiros que gastamos, etc. — a escrituralidade influencia, condiciona e precede a oralidade: quando fomos para a escola aprender a ‘língua materna’ não fomos reaprender algo que já trazíamos de casa (a nossa língua funcional), fomos aprender uma realidade linguística nova, a realidade do grafolecto e da norma padrão ou norma culta, a qual é elemento identitário cultural e nacional da maior importância. Sem ortografia, garante incontornável da estabilidade do grafolecto e do acervo comunitário de informação que o mesmo codifica, não há continuidade cultural intergeracional estável.


3. Falando da ortografia portuguesa

Falar da ortografia portuguesa, um bem que levou 700 anos a estabilizar-se, como se fosse coisa pouca (a estabilização da nossa fronteira política continental levou cerca de 100 anos), e falar de uma mudança ortográfica qualquer como uma simples alteração cosmética numa roupagem superficial de um sistema linguístico padronizado (a norma culta) de uma nação multissecular dotada de um património literário e textual imenso é simplesmente não se saber do que se está a falar.

Um excelente exemplo de ignorância aplicada vem-nos, uma vez mais, da boca de Carlos Reis, catedrático coimbrão, reitor da Universidade Aberta, autor alegado de um plano estratégico para a língua portuguesa (que ainda ninguém viu mas de que já muito se falou). Na senda de comentários publicados noutras ocasiões e noutros lugares, o ‘filólogo’ Alves do Reis proferiu curiosas afirmações em entrevista recente ao semanário português Expresso, onde uma vez mais vitupera algumas características do português europeu:

«Há aspectos do português do Brasil em que leva vantagem sobre nós. Um deles é a articulação: um filme português passado no Brasil precisa de ser legendado e um brasileiro em Portugal não. Tão simples como isto. Porque os portugueses tendem a obscurecer a língua do ponto de vista articulatório, fonológico, de pronúncia. Engolem as palavras. O português do Brasil valoriza mais as vogais, os fonemas vocálicos, o que é uma vantagem para o bom entendimento. Temos de fazer um esforço de recuperar coisas que se perderam e isso só pode ser feito na escola, lendo expressivamente, obrigando a pronunciar bem as palavras todas. Mas a importância do Brasil neste cenário é evidente desde algum tempo.»
(Expresso, 5/7/2008)

Sendo eu professor de fonologia portuguesa há algum tempo, confesso que tenho alguma dificuldade em comentar friamente estas declarações ignaras, absolutamente inadmissíveis por parte de um universitário que se intitula (ou deixa que o intitulem) ‘filólogo’. Basicamente o que Reis nos propõe é isto:

1) em Portugal a língua tem um déficit de vogais;
2) o português do Brasil é melhor do que o de Portugal porque tem mais vogais;
3) deve-se restaurar as vogais perdidas do português europeu forçando as crianças portuguesas a ler “expressivamente” (ou seja, a soletrar!).

O que tem isto a ver com ortografia ou com língua escrita? É simples. O nosso sistema ortográfico assenta basicamente em convenções grafofonémicas que se fixaram a partir do século XIII. Desde o século XIII, época da emergência do portuguez lingua escripta (como escreveu o grande Adolpho Coelho, fundador da linguística portuguesa), mudanças portentosas afectaram a fonologia da língua. No entanto, a escrita, conservadora por natureza e por necessidade, não registou praticamente nada do que aconteceu desde essa época remota.

Ora, um dos fenómenos mais marcantes da fonologia do português europeu, e que a ortografia não assinala, é o processo de redução do vocalismo átono, através do qual as vogais das sílabas inacentuadas perdem abertura e duração (entre outras coisas). O início do processo é antigo, pois afectou de forma semelhante as vogais finais de palavra no português europeu e no português veracruciano (na realidade pode-se fazer remontar o processo a época muito anterior à fundação da Nacionalidade, dado que as sete vogais do latim vulgar tardio se reduziram em posição átona não final a cinco e em posição final a três em época antiquíssima). Mas enquanto as variedades veracrucianas confinaram o fechamento extremo às vogais finais, o português europeu, na sua deriva própria, estendeu-o a todas as sílabas átonas. Assim, tanto no português cis- como transatlântico, as vogais finais de ‘bata’, ‘bate’ e ‘bato’ são mais fechadas do que as vogais tónicas de ‘bata’, ‘berço’, ‘bela’, ‘bolo’ e ‘bola’, grafadas com as mesmas letras (aliás, na fala coloquial europeia as vogais finais de ‘bate’ e ‘bato’ nem sequer são proferidas). No entanto, o português europeu e o português do Brasil têm vogais muito distintas nas sílabas átonas iniciais de ‘falar’, ‘levar’ e ‘tomar’.

O facto de não ter havido necessidade de ajustar a ortografia europeia à redução das vogais átonas, mantendo-se as mesmas formas ortográficas dos dois lados do Oceano, apesar de corresponderem a formas fonéticas divergentes, mostra bem a inexistência de um “princípio fonético” na ortografia portuguesa.

Assim, o que Carlos Reis propõe não é mais do que um portento inaudito na história das línguas naturais: uma regressão fonológica que apagaria quatrocentos ou quinhentos anos de mudança linguística! Repare-se: não há línguas mais evoluídas nem línguas mais primitivas, línguas mais simples ou línguas mais complexas, línguas intrinsecamente melhores ou piores. Não há mudanças linguísticas más nem boas, como não há sistemas vocálicos bons, maus, vantajosos ou desvantajosos. Todas as línguas mudam a cada momento e de forma sistémica: não evoluem nem involuem e não melhoram nem pioram.

“Reabrir” as vogais fechadas do português, admitindo que tal seria possível e vantajoso, implicaria obrigar os falantes europeus a usar um sistema fonológico arcaico que lhes seria totalmente estranho. A proposta absurda de Alves dos Reis mostra bem como a imagem gráfica das palavras está gravada a ferro e fogo na nossa mente e condiciona a percepção da língua falada: não é por se ter palavras em elevado número grafadas com A, E e O finais que se justifica que se altere o modo de prolação das vogais átonas finais. Afinal, a língua oral e a ortografia têm ritmos distintos de mudança, porque são códigos de distinta natureza e carácter.

(sobre a vantagem que o Brasil leva sobre nós, segundo Reis, por ter vogais diferentes das nossas, o grau do disparate é tamanho e tão servil que dispensa comentários).

Voltando ao Acordo Ortográfico de 1990, monumento de incompetência científica e de indigência cultural.

As ideias de que o AO aproximará a escrita da fala ou simplificará a aprendizagem, ideias que encontramos a cada passo na “Nota Explicativa do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990”, e nas declarações e pronunciamentos de acordistas, carecem de todo um fundamento científico (e empírico). São ideias ignorantes e retrógradas.

Os disparates de Carlos Reis (grande defensor e promotor do AO) acima citados e comentados, sobre a necessidade de se alterar a pronunciação do português europeu de forma a fazê-la regredir quatrocentos ou quinhentos anos, mostram bem a impreparação científica que grassa nas fileiras de quem defende o Monstro Disortográfico. É impreparação crassa em Linguística, Grafemática e Literacia, que impede uma reflexão séria, quanto mais um debate sério, sobre estrutura e mudança ortográfica em Portugal no século XXI. É uma coisa lamentável.

Quem fez o AO objectivamente não sabia do que estava a tratar, não tinha uma dimensão ecológica e antropológica (nem sequer linguística!) da escrita.

Quem o defende hoje, ou não o leu (é a maioria dos casos) ou é simplesmente irresponsável e não tem sentido histórico, ou então é indiferente, o que, no caso vertente, quando está tanto em jogo, vem dar ao mesmo.

31 de Julho de 2008
António Emiliano
FCSH/UNL

— publicado originalmente em
Revista Autor, por convite de Ricardo Miguéis
— este texto está na origem do artigo “O Primado da Escrita”, publicado em 2009 na Revista Linguística do Centro de Linguística da Universidade do Porto, por convite da Sr.ª Professora Maria da Graça Castro Pinto (FLUP)

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