sábado, 18 de fevereiro de 2012

A religião contra o Estado

(http://www.pavablog.com/2011/09/07/a-religiao-contra-o-estado/)

A religião contra o Estado

O fundamentalismo religioso, com seus códigos de conduta reacionários, é hoje o maior inimigo político do Estado Democrático de Direito

Texto de Túlio Vianna publicado originalmente na Revista
Forum

A religião é a política realizada em nome de Deus. O líder religioso, assim como qualquer líder político, pretende governar o maior número de pessoas possível. Um governo que se faz não por leis, mas por dogmas.

O monoteísmo é autoritário na sua essência. Nunca houve plebiscitos e nem mesmo reuniões com representantes eleitos pelo povo para criar os dogmas de uma religião. Eles são ditados de cima para baixo, por alguém que fala em nome do próprio Deus e, portanto, é incontestável, mesmo pela vontade da maioria.

Como os líderes religiosos não dispõem, nos dias de hoje, de um braço armado para fazer valer suas leis pela força, precisam convencer seus governados a se sujeitarem às suas normas pelo proselitismo. E mais: precisam convencer também aqueles que não se sujeitam àquelas normas, ao menos a respeitá-las.

A fé é a mais autoritária das ideologias políticas já inventadas. Um instrumento político quase perfeito que permite ditar normas unilateralmente, governar sem a necessidade de armas e, ainda por cima, blindar-se de críticas em nome da tolerância religiosa.

Como em toda ideologia, há aqueles que acreditam piamente nela e lutam para vê-la concretizada e há também aqueles que simplesmente a tomam como pretexto para satisfazer seus interesses pessoais. Creiam ou não em sua ideologia e em seus deuses, todos agem politicamente no sentido de agregar cada vez mais um número maior de seguidores e de acumular riquezas para sustentar a expansão de sua ideologia e de seu poder político.

E não há nada de errado, por si só, em tentar expandir uma religião ou uma ideologia, acumulando patrimônio e gente disposta a seguir seu código de condutas. É natural que as pessoas se unam em torno de convicções comuns e a partir daí surjam lideranças políticas.

O problema surge quando estas lideranças reconhecidas dentro de um grupo resolvem expandir seu poder político para além do grupo, impondo suas normas de condutas não a quem resolveu por conta própria aderir a elas, mas a quem tem ideologias e deuses completamente diferentes. Neste ponto, não se trata mais de uma questão religiosa, mas de uma questão meramente política.

A religião só é religião até ser imposta; depois disso é simplesmente política e pode ser exercida tanto pela força das armas como pelos votos de uma maioria fundamentalista. E o uso do nome de Deus para mascarar o exercício deste poder político é a ferramenta política mais hipócrita que já se inventou, mas tem funcionado muito bem ao longo da história.

O exemplo mais bem sucedido deste exercício de poder político em nome de Deus é o da Igreja Católica Apostólica Romana, que acumulou riquezas e impôs suas normas de condutas para populações espalhadas por todo o mundo em nome de seu Deus, durante vários séculos. A Inquisição e a catequização de índios não foram ações religiosas, mas políticas. E pouco importam as boas ou más intenções daqueles que as realizaram, o fato é que buscavam com elas impor normas de condutas a populações que não a aceitaram por livre e espontânea vontade.


O neopentecostalismo e a bancada teocrática

Na atualidade, o Vaticano perdeu grande parte de seu poder político na Europa e, mesmo no Brasil, onde sempre foi muito forte, tem perdido espaço para o neopentecostalismo que, nos últimos anos, vem acumulando grande poder político e econômico.

Se, por um lado, a ausência da uma liderança unificada dificulta o exercício do poder político por estas novas lideranças, por outro, sua ideologia espiritual favorece bastante a acumulação de riquezas pelos seus pastores. Enquanto a moral católica considera a temperança, a caridade e a humildade como virtudes, o neopentecostalismo está fundado na Teologia da Prosperidade e afirma que os verdadeiros fiéis devem desfrutar de uma excelente situação econômica.

Há, é claro, um detalhe: para que Deus conceda ao fiel as benesses materiais, é preciso que este faça um pacto com Ele, oferecendo-Lhe toda sorte de oferendas materiais, dentre as quais se destaca o dízimo. É a chamada Doutrina da Reciprocidade, que viabilizou todas estas rápidas expansões de igrejas neopentecostais nos últimos anos.

Escudados na liberdade religiosa, pastores cobram impostos privados de seus fiéis – o famoso dízimo – e não precisam pagar qualquer imposto ao Estado, pois a Constituição da República garante em seu artigo 150, VI, b, a imunidade tributária a templos de qualquer culto. Verdadeiros impérios econômicos vêm sendo erguidos assim, tal como ocorreu no passado com a Igreja Católica. E, tal como ocorreu no passado também, esse dinheiro vem sendo usado para expandir o poder político dos líderes desta Igreja, seja por meio da aquisição de meios de comunicações (inclusive de redes de televisão), seja pelo financiamento de campanhas para cargos públicos destes líderes que cada vez mais vêm ocupando cargos, especialmente no Parlamento brasileiro.

Como sempre, os novos líderes espirituais afirmam que todos estes investimentos materiais têm como único e exclusivo objetivo a expansão da palavra do Deus deles e de seu código moral, que, como em toda boa religião monoteísta, deve ser universalizado para o “bem de todos”. Ainda que se admita, porém, que não haja interesses pessoais por trás da expansão destes impérios da fé, fato é que o seu principal objetivo declarado é a expansão de seu poder político, açambarcando a cada dia um número maior de fiéis e impondo seu código de condutas a um maior número de pessoas. Mesmo que para isso precise passar por cima do Estado Democrático de Direito que, ao contrário do monoteísmo, não impõe normas unilateralmente e pressupõe o respeito à pluralidade de opiniões.

Do ponto de vista exclusivamente político, o Estado Democrático de Direito é o maior entrave à expansão do império econômico e político das igrejas neopentescostais e de seus bispos. Não é à toa que cada vez mais eles têm buscado conquistar cadeiras do Parlamento. E a bancada teocrática tem se tornado a cada dia uma das principais forças políticas de nosso Congresso, restringindo os direitos fundamentais de quem não acredita em seu Deus em prol da expansão política e econômica de seu império.

A teocracia é incompatível com o Estado Democrático de Direito, dado o autoritarismo inerente ao monoteísmo. Não se realizam votações para saber se é da vontade de Deus receber dízimos ou condenar os homossexuais a passarem a eternidade no inferno. São seres humanos que afirmam isso e que impõem aos outros a palavra de Deus que eles próprios escreveram. E estas são ações políticas e como tais devem ser tratadas.

E é por isso que o Estado Democrático de Direito é, por sua própria natureza, laico. Porque é impossível ser democrático e monoteísta ao mesmo tempo. Assim como é impossível ser candidato a um cargo público e bispo, pastor ou padre ao mesmo tempo. Há um evidente conflito de interesses entre aquele que fala em nome de seu Deus e aquele que pretende falar em nome do povo em meio ao qual nem todos acreditam em seu Deus.

Para minimizar esta incompatibilidade é necessário, ao menos, que se exija que bispos, padres, pastores e outros clérigos se licenciem de suas atividades sacerdotais um ano antes de se candidatarem a cargos públicos. Restrição semelhante já é aplicada pela lei complementar 64/90 a magistrados, diretores de sindicatos e outros cargos públicos, tendo em vista a incompatibilidade de suas funções com uma campanha eleitoral, e poderia perfeitamente ser aplicada também aos sacerdotes de qualquer crença. Projeto de lei neste sentido foi apresentado pela deputada Denise Frossard (PSDB-RJ) na Câmara dos Deputados em 2004 (PLP 216/2004), mas foi arquivado em 2007, pois ainda se encontrava em tramitação no fim da 52ª legislatura e não houve pedido de desarquivamento na legislatura seguinte.

Uma outra iniciativa necessária é limitar a transmissão de programas religiosos em rádios e televisões para no máximo uma hora diária, tal como foi proposto em 1999 (PLS 299/99) pelo senador Antero Paes de Barros (PSDB-MT). A Constituição da República é explícita em seu artigo 221, ao determinar que a programação das emissoras de rádio e televisão terá, por preferência, finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas. É inconcebível que, no Estado laico, concessões públicas de rádio e TV sejam usadas, como são nos dias de hoje, em prol do proselitismo religioso que não raras vezes passa boa parte do tempo solicitando doações financeiras a seus fieis. Um autêntico merchandising da fé, patrocinado pelo Estado que, por definição constitucional, é laico.

Lamentavelmente, porém, há pouca vontade e coragem política dos parlamentares brasileiros de desafiar o poder político e econômico do novo e do velho clero. A esquerda tem sido bastante leniente com as violações do Estado laico e as poucas inciativas para amenizar o problema, como se viu, por mais paradoxal que seja, partiram do conservador PSDB.

O Brasil precisa urgentemente de uma bancada secular no Congresso Nacional para fazer frente à bancada teocrática (que prefere ser chamada de evangélica). Os valores democráticos da laicidade precisam ser reafirmados por parlamentares que não temam desafiar o crescente fundamentalismo religioso que a cada dia ganha espaço na política brasileira. Não se trata de um combate a qualquer religião, mas à política realizada em nome de Deus e que pretende impor seus códigos de condutas conservadores a toda uma população.

A luta pela efetivação do Estado laico é a luta pela democracia. Por leis que sejam ditadas não de cima para baixo por uma autoridade que fala em nome de Deus, mas construídas a partir do diálogo plural e com respeito aos direitos fundamentais. E isto, deus monoteísta nenhum poderá conceder, pois seus mandamentos são – por definição – mandamentos.

Monoteísmo e democracia são ideologias políticas antagônicas. É esta a grande cruzada da religião contra o Estado.

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