segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Salvem-nos as consonâncias mudas

Salvem-nos as consonâncias mudas (Pela revisão do Acordo Ortográfico)

André Barata

O debate sobre o acordo ortográfico foi relançado com um estrepitoso gesto de Vasco Graça Moura. Independentemente da sua maior ou menor correção protocolar, ao mandar remover dos computadores do CCB o software que tratava de aplicar o Acordo aos textos, Vasco Graça Moura revolucionou a discussão: já não são os “sim” que ganham terreno aos “não”, mas o contrário, e começa-se a pressentir a caducidade, a prazo, da coisa. O gesto do poeta – de um poeta e tradutor sensibilíssimos à Língua – significou uma assunção generalizada do descómodo deste Acordo. Já não é uma questão política, teórica e abstratamente debatida (provavelmente com muito boas razões para o lado do “sim”), mas um repúdio bem rente à concreta experiência da Língua. A força de inércia das disposições legais, das decisões já tomadas e ratificadas, que iam paulatinamente sendo aplicadas, esbarrou na força de inércia que somos nós próprios, os falantes e os escrevinhadores desta Língua que nos faz os hábitos com que pensamos e nos exprimimos, essa continuada intimidade connosco mesmos, gente e cultura por que viajamos juntos. Vasco Graça Moura não fez demais, apenas despoletou (no sentido incorreto da palavra, pois sim) esta reação. É que não me custa passar a escrever reação, projeto, até mesmo ereção, deixanto cair um cê em cada uma destas palavras, mas não me peçam para que escreva adoção, a não ser por amargo trocadilho da palavra adopção com alguma falta de doçura, e não me abusem do juízo (isto para evitar palavras mais vernaculares) com anticoncecionais sem ponta de pê. E nenhum cidadão português que se preze poderá alguma vez percecionar a sua Língua sem se desmanchar a rir enquanto trauteia a declinar este nova sonoridade: eu perceciono, tu percecionas, ele perceciona, nós percecionamos…

Enfim, para não abusar de trocadilhos com pouca graça, faço uma pergunta óbvia: Como foi possível não ter Malaca Casteleiro e companhia atendido ao facto de que as consoantes mudas desempenham na Língua Portuguesa papéis muitos diferentes e que não se poderia tratar todas por igual? Explico-me com mais um trocadilho: é que dantes muitas consoantes mudas eram lidas como consonâncias mudas; emudecê-las agora é gritá-las como estridência dissonante.

Está visto, portanto, que o maior mal deste Acordo é ser tão atabalhoado. Talvez por isso até a própria a discussão do Acordo foi atabalhoada, misturando níveis de discussão distintos. Por exemplo, não raras vezes se viu ser argumentado que a Língua é de quem a fala sugerindo a ideia de que a determinação de uma norma ortográfica constituísse uma usurpação da Língua pelo poder político, como se a ortografia que até agora temos usado não tivesse sido ela mesma estabilizada de forma normativa no passado.

Creio que foi a Sophia que se lamentou de se ter alterado a ortografia de “dansa” para “dança” trocando aquele “s” dançante por este “ç” tão equivocamente sentado. E nem por isso a Sophia perdeu o seu ph como as pharmácias, lá na sua juventude. Alguém queixava-se do abissal sem ípsilon ser menos abyssal do que com i. Aconteceu uma vez, aconteceu duas vezes, muitas mais vezes acontecerá enquanto a Língua for viva e, muito precisamente, enquanto for de quem a fala. Imagino que tivesse eu vivido no tempo em que se decidiu subtrair o ípsilon ao alfabeto português e ter-me-ia sentido genuinamente amputado. Mas não estaria a ser justo se achasse que a minha língua seria agora menos rica, menos potência de expressão, do que era quando autorizava os ípsilon.

Pondo um pouco de ordem nas ideias, parece-me apropriado distinguir pelo menos três questões diferentes no debate sobre o Acordo Ortográfico:

1. Deve haver uma estabilização da ortografia através do estabelecimento de uma norma?
2. Devem as normas ortográficas do Brasil, de Portugal e restantes estados da CPLP manterem algum tipo de compromisso?
3. Está o acordo ortográfico técnica e cientificamente bem feito?

As minhas respostas a estas três questões são diferentes: sim, nim e não. Sim à primeira pergunta, porque é assim que sempre foi desde que os poderes públicos assumiram algumas responsabilidades para com os usos da Língua, seu ensino, sua difusão, etc. Não penso que a criatividade literária e mesmo filosófica seja afetada por este Acordo por uma razão muito simples: por serem também criatividade sobre a Língua. Não imagino Mia Couto minimamente inibido das suas novas palavras, como não imaginaria Saramago inibir-se da sua sintática, ou então, um filósofo que deixasse de se propor rasurar a ortografia de uma palavra para assim fazer nascer, com outra, um novo conceito. Mas tudo isto só significa que não é preciso a anarquia linguística para que sejamos criativamente livres e sempre livres-pensadores; como também não é preciso enlevarmo-nos por um narcisismo ortográfico que, bem lá no fundo, ainda não me provou que não bebe do vinho do conservadorismo bem sentado.

Voltando às coisas como elas são, acho compreensível uma certa irritação com o facto de ter sido muito mais o que cedeu o Português de Portugal do que o Português do Brasil. Mas aborrece mais o meu patriotismo ortográfico perceber que as razões desse desequilíbrio não são dessa ordem de considerações. A desproporção de tamanhos entre os dois países, na verdade entre um país e um meio continente, não disfarça realmente a impressão de que algo correu mal na preparação do Acordo Ortográfico e que, na raiz do problema, esteve menos a subordinação a um Brasil Império da Língua do que a bem mais terrena falta de acribia da parte dos que cá tinham a responsabilidade de cuidar de nós linguisticamente. E a este respeito vou ser muito franco. Escolham meia dúzia de palavras com alto valor semântico e comparemos os respetivos verbetes nos dicionários Houaiss e da
Academia de Ciências. Asseguro-vos que a desproporção entre os Dicionários é comparável ao resultado deste Acordo Ortográfico. Em suma, o problema deste Acordo não se desliga facilmente do facto de que Malaca Casteleiro não é Antônio Houaiss e de que, na sua preparação, tratámos pior a consonância da nossa Língua do que os nossos pares brasileiros. É uma pena, mas foi assim.

O que fazer então? Deixem-se lá de brasis aqui d’el rei, e de filosofias da grafia e de poéticas do ípsilon e do cê sentado, e olhando para o que há que ver, façam uma revisão integral do Acordo e, primeiro que tudo, salvem as nossas consonâncias mudas. Mais, sugiro que mandatem o Vasco Graça Moura para dirigir as operações, dando-lhe meios humanos e técnicos. E voltemos a falar sobre o assunto daqui a um ano.

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