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Abaixo referi a inexistência de textos actuais defendendo o Acordo Ortográfico. Mas logo leio textos concordantes, em particular de jornalistas. Paulo Querido [que é uma espécie de amparo do ma-schamba, tanto o apoio infraestrutural que lhe tem dado desde há anos] interrompeu a sua actividade insurreccional para defender com arreganho a ordem legal: se há pouco tempo, e por causa de uma tirada algo infeliz, intentou um movimento de massas para demitir o Presidente da República Portuguesa, democratica e constitucionalmente eleito, surge agora fervoroso legalista contra Vasco Graça Moura, por este provocar uma “uma discussão serôdia e contraproducente — …– [sobre] uma decisão pensada, discutida ao longo de duas décadas e subscrita por vários governos e presidentes de várias cores políticas”, entre os quais, e não o menor dos quais, exactamente o referido senhor Presidente da República. Este súbito apego à douta autoridade estabelecida é prosseguido também pelo jornalista Henrique Monteiro, que em o “O Acordo 20 anos depois” se insurge contra o “ilegalismo” da turba dos “ph”s (pois é fundamentalmente disso que ele trata), verdadeiros adversários da sã e profíqua convivência internacional inter-lusófona. Também ele se rebela: “Eis porque não aceito que uma lei discutida durante mais de 20 anos seja constantemente colocada em causa“. Imagino a sua angústia existencial, diante da constante produção e renovação legislativa sobre tantas e tão variadas matérias. Sobre a argúcia da sua restante argumentação convirá ler Carlos do Carmo Carapinha. A mim basta-me a surpresa de ver estes “acordistas”, sempre lestos em acusarem o “desacordismo” de sacralizar a letra das letras, num registo tão sacralizador da letra da lei gráfica.
Ou seja, é precipitado afirmar que não existe nas hostes lusas o
elogio do “enxutismo” da neo-ortografia (para utilizar a abordagem do blogo-confrade “acordista” Rui Cerdeira Pinto, do Adufe). Até porque esse “enxutismo” surge
entendido como pedagogicamente favorável às novas gerações, qual sequela das Novas Oportunidades . (Sobre este “enxutismo” gráfico, aparentemente benéfico para o ensino do português aos atrapalhados infantes convém sempre ler o brilhante “Omens sem H”, de Nuno Pacheco, publicado já em meados de 2011).
O pior disto tudo é que Vasco Graça Moura publica agora “Questões do Estado de Direito” (reproduzo abaixo). Nada percebo de leis. Mas se VGM não exagerou, se não “forçou a nota” (e polemista como é talvez seja o caso) tudo isto tem um corolário óbvio. Amanhã à tarde tenho que ir à escola da minha filha dizer à professora de português que é ilegal o que lhe anda a fazer, nesta tropelia acordista, por mais “enxuta” que esta se apresenta. E tenho que botar à direcção da Escola Portuguesa de Moçambique (sempre tão pressurosa em explicitar a incompetência pedagógica dos “papás”, como por vezes têm a lata de nos chamar) que estão ilegais. Que estão heterográficos. E isso vai ser uma chatice. Para eles.
E para a minha filha …
Aqui segue o VGM. Haverá por aí algum jurista que me ajude a perceber o que deverei fazer amanhã à tarde?
Questões do Estado de Direito.
O que é que haverá de comum entre personalidades tão diferentes como Pedro Santana Lopes, Jorge Bacelar Gouveia, José António Saraiva e Henrique Monteiro? Face aos jornais das últimas semanas, a resposta é muito simples: todos defendem o Acordo Ortográfico, todos discordam das posições que tenho sustentado, todos, pelos vistos, entraram em alerta vermelho com os textos publicados no Jornal de Angola, e todos evitam tomar posição sobre questões que são essenciais.
A primeira dessas questões é a da entrada em vigor do AO. Toda a gente sabe que, não tendo sido ratificado pelas Repúblicas Populares de Angola e de Moçambique, ele não entrou em vigor.
A ratificação é o acto pelo qual um estado adverte a comunidade internacional de que se considera obrigado nos termos do tratado que subscreveu juntamente com outros estados. No que a este caso interessa, o tratado entra em vigor na ordem jurídica internacional logo que ratificado por todos os estados signatários. A partir do momento em que entre em vigor na ordem jurídica internacional, essa convenção será recebida na ordem jurídica interna do estado signatário. Antes, não pode sê-lo.
Não estando em vigor na ordem jurídica internacional, nem ele nem, por identidade de razão, o bizarro segundo protocolo modificativo, uma vez que também não foi ratificado por aqueles estados, o AO não está nem pode estar em vigor na ordem jurídica portuguesa.
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.
Ora, sem o AO estar em vigor, a solução é muito simples: continua a vigorar a ortografia que se pretendia alterar. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.
A segunda questão prende-se com a exigência, feita pelo próprio AO (art.º 2.º), de um vocabulário ortográfico comum, elaborado com a participação de instituições e órgãos competentes dos estados signatários. Não existe. Qualquer outro vocabulário que se pretenda adoptar, seja ele qual for, será uma fraude grosseira ao próprio acordo…
A resolução do Conselho de Ministros do Governo Sócrates (n.º 8/2011, de 25 de Janeiro) raia os contornos de um caso de polícia correccional: produz uma distorção ignóbil da verdade ao afirmar, no preâmbulo, que adopta “o Vocabulário Ortográfico do Português, produzido em conformidade com o Acordo Ortográfico”. É falso.
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a este ponto.
Mesmo que entendessem que o AO está em vigor, uma coisa é certa: nenhum entendimento, nenhum diploma, nenhum sofisma político ou jurídico pode dar existência àquilo que não existe.
Sendo assim, e não se podendo aplicar o AO por falta de um pressuposto essencial à sua aplicabilidade, continua em vigor a ortografia que se pretendia alterar por via dele. Como estamos num estado de Direito, a solução é só essa e mais nenhuma. E a lei deve ser cumprida por todos.
O grande problema é portanto o de que cumprir o Acordo Ortográfico, no presente estado de coisas do nosso estado de Direito, implica não o aplicar! Ou, dizendo por outras palavras, fazer de conta que se aplica o AO é violá-lo pura e simplesmente, na sua letra e no seu espírito…
Nenhuma das individualidades referidas toma posição quanto a esta situação paradoxal de que, certamente, tiveram a argúcia de se aperceber.
De resto, há muitas outras questões que têm sido levantadas, mas que as mesmas individualidades se dispensam de considerar, mostrando uma suficiência assaz discutível em relação a assuntos que não estudaram e de que, pelos vistos, percebem pouco. Não as abordaremos para já, mas elas não perdem pela demora. Diga-se apenas que nem mesmo o Brasil aceita a carnavalização da grafia que está a ser praticada em Portugal!
Acrescento que estou um tanto ou quanto farto de ter de voltar a estas coisas com alguma frequência. Mas tenho mais apego à minha língua do que a muitos outros interesses pessoais. E voltarei ao assunto as vezes que for preciso.
Para já, trata-se de instar quatro pessoas que considero e com quem tenho uma relação cordial, a que respondam aos pontos que levantei e aproveitem para ponderar as judiciosas considerações que sobre o assunto o Jornal de Angola tem publicado. Não perdem nada com o exercício.
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