Os 53 segundos que explicam a crise do euro e o lugar de Portugal
Por Bruno Faria Lopes
Num filme de 53 segundos estão expostos os principais elementos da crise do euro e do papel de Portugal: a missão de Gaspar em distanciar Portugal da Grécia, a referência à vontade do povo alemão como a explicação para a dureza mostrada pelo governo em Berlim, a hierarquização assumida entre países devedores da periferia, como Portugal, e países credores do Norte, como a Alemanha e a ausência de uma governação comum na zona euro. As imagens captadas pela TVI “fazem mais para explicar a crise do euro aos portugueses do que a maioria das explicações dos comentadores”, ironiza o politólogo José Adelino Maltez.
Lição #1. "Não somos a Grécia" é mais para Berlim do que para os mercados
A conversa entre Gaspar e Schäuble confirma que, para o governo português, o principal alvo da mensagem "Somos cumpridores e não somos a Grécia" não são os mercados financeiros – é o governo da Alemanha.
"O programa da troika é uma tentativa de mostrar serviço aos contribuintes alemães, agora nossos credores", aponta Luciano Amaral, historiador de Economia na Universidade Nova de Lisboa. "O programa nem é do gosto dos mercados, que preferiam ver a Alemanha a garantir a dívida dos países periféricos".
A estratégia do governo português tem sido tentar cumprir o memorando e negar o que muitos economistas consideram inevitável: o prolongamento da assistência. A conversa confirma que Portugal está a marcar pontos em Berlim.
"Depois [de fechado o dossiê grego] se for necessário um ajustamento do programa português nós estaremos preparados", disse Schäuble a Gaspar. O ministério das Finanças alemão reagiu ontem com a versão de que é cedo para "especular" sobre que tipo de ajustamento será feito, mas confirmou o tom de Schäuble. "Os países que estão a cumprir ou a ir além das suas orbigações poderão sentir que é mais fácil conseguir a aprovação [dos membros da zona euro] para possíveis modificações a estes programas", cita o Financial Times.
O sinal dado por Schäuble ilustra que, para o governo alemão, Portugal descolou politicamente da Grécia – mas mostra, também, que a Alemanha sabe que Portugal precisa de mais tempo e dinheiro. Opaís até pode voltar ao mercado em 2013, mas os juros muito altos fariam descarrilar a dívida e a consolidação conseguida. "Schäuble foi confrontado com a realidade", comentou ontem via Twitter Sven Giegold, parlamentar europeu pelos Verdes (citado pelo jornal Sueddeutsche Zeitung).
Não ficou claro o que quer dizer "um ajustamento no programa", mas dificilmente será a suavização da austeridade – falta marcar mais pontos para chegar aí. "Deverá ser o prolongamento da assistência", intepreta Filipe Garcia, economista da consultora IMF. Os mercados gostaram: os juros da dívida portuguesa caíram a pique em todos os prazos.
Lição #2. Merkel tem poder, mas não passa por cima do seu eleitorado
O governo alemão dita o curso dos acontecimentos no euro – mas está sujeito a fortes pressões internas, como ilustra a conversa entre os dois ministros. A acção do governo alemão na crise – a ênfase na austeridade e a resistência em emprestar dinheiro – é um espelho da evolução da maioria das vontades colectivas do eleitorado germânico.
"Parte importante da população é agitada por tablóides como o Bild, que retratam os países do sul como preguiçosos. A percepção dominante é de que o contribuinte alemão não deve financiar estes países, que vêem como infractores", comenta ao i um consultor de negócios alemão, que preferiu o anonimato.
A deterioração da crise na Grécia contribui para a hostilidade maior da opinião pública alemã contra um segundo resgate financeiro. Em 2010, as sondagens mostravam que a maioria não gostava dos resgates, mas que os considerava necessários. Uma sondagem publicada esta semana pelo instituto alemão Forsa revela que agora 53% dos inquiridos estão convencidos que o euro pode ser defendido sem a Grécia.
A Alemanha é a maior economia do euro e o principal contribuinte para os resgates financeiros. Com o desemprego no mínimo de 20 anos (5,5%) e uma economia a crescer (e a vender cada vez mais para a China), os eleitores e os seus representantes no Parlamento – a quem foi prometido, na lei, que o euro não implicaria transferências orçamentais para outros países – têm uma atitude mais dura face à crise do euro.
Em Berlim, como em Bruxelas, o descrédito das autoridades gregas é total (ver texto na página ao lado). Fonte sénior em Bruxelas, ouvida pelo i, indica que a Europa poderá deixar cair a Grécia depois de erguer uma muralha financeira para defender os restantes países do euro.
Portugal é o próximo na linha de fogo e pode beneficiar. Um segundo colapso no euro deitaria por terra a teoria vendida aos mercados de que a Grécia é uma excepção, ameaçando Espanha e Itália. Mas num jogo sem regras (ver a terceira lição) a regra é "ajudar o governo alemão que vai eleições em 2013 a ajudar-nos" – quem paga pode optar respeitar a opinião da maioria.
Lição #3. Numa União sem regras e governo, as regras são da Alemanha
A conversa entre Gaspar e Schäuble é um exemplo perfeito de uma união monetária que está longe de ser uma união política – não há um governo da zona euro, o que num contexto de crise amplia muito a projecção de poder entre estados da mesma união, bem visível na atitude de cada um dos ministros.
"Nesta Europa há uma hierarquia de potências – não há regras mas há quem faça as regras", ironiza o politólogo José Adelino Maltez. "Quando este sistema de Europa clandestina promove a criação de um Papademos em Atenas e de um Monti em Roma até nos podemos dar por satisfeitos por em Portugal ainda não ter sido imposta a substituição do primeiro-ministro", acrescenta.
O problema da hierarquização crescente – entre povos credores e devedores – é ampliado pelo vazio das instituições de governação europeia.
"Vítor Gaspar deveria estar a ter aquela conversa com o presidente de uma instituição europeia e não com um ministro alemão, que supostamente é seu par", sublinha Filipe Garcia, da consultora financeira IMF. "De um ponto de vista pragmático percebe-se a conversa, mas revela bem as deficiências da construção política europeia", acrescenta.
A crítica dos observadores ouvidos pelo i não é dirigida a Vítor Gaspar, embora ninguém tenha gostado de assistir ao contraste entre as atitude – uma conversa banal para Schäuble e crucial para Gaspar. "Ser dependente é gerir as dependências e Gaspar cumpriu a sua função de caixeiro viajante – meteu uma cunha ao ministro alemão por Portugal", aponta Adelino Maltez.
Por Bruno Faria Lopes
Num filme de 53 segundos estão expostos os principais elementos da crise do euro e do papel de Portugal: a missão de Gaspar em distanciar Portugal da Grécia, a referência à vontade do povo alemão como a explicação para a dureza mostrada pelo governo em Berlim, a hierarquização assumida entre países devedores da periferia, como Portugal, e países credores do Norte, como a Alemanha e a ausência de uma governação comum na zona euro. As imagens captadas pela TVI “fazem mais para explicar a crise do euro aos portugueses do que a maioria das explicações dos comentadores”, ironiza o politólogo José Adelino Maltez.
Lição #1. "Não somos a Grécia" é mais para Berlim do que para os mercados
A conversa entre Gaspar e Schäuble confirma que, para o governo português, o principal alvo da mensagem "Somos cumpridores e não somos a Grécia" não são os mercados financeiros – é o governo da Alemanha.
"O programa da troika é uma tentativa de mostrar serviço aos contribuintes alemães, agora nossos credores", aponta Luciano Amaral, historiador de Economia na Universidade Nova de Lisboa. "O programa nem é do gosto dos mercados, que preferiam ver a Alemanha a garantir a dívida dos países periféricos".
A estratégia do governo português tem sido tentar cumprir o memorando e negar o que muitos economistas consideram inevitável: o prolongamento da assistência. A conversa confirma que Portugal está a marcar pontos em Berlim.
"Depois [de fechado o dossiê grego] se for necessário um ajustamento do programa português nós estaremos preparados", disse Schäuble a Gaspar. O ministério das Finanças alemão reagiu ontem com a versão de que é cedo para "especular" sobre que tipo de ajustamento será feito, mas confirmou o tom de Schäuble. "Os países que estão a cumprir ou a ir além das suas orbigações poderão sentir que é mais fácil conseguir a aprovação [dos membros da zona euro] para possíveis modificações a estes programas", cita o Financial Times.
O sinal dado por Schäuble ilustra que, para o governo alemão, Portugal descolou politicamente da Grécia – mas mostra, também, que a Alemanha sabe que Portugal precisa de mais tempo e dinheiro. Opaís até pode voltar ao mercado em 2013, mas os juros muito altos fariam descarrilar a dívida e a consolidação conseguida. "Schäuble foi confrontado com a realidade", comentou ontem via Twitter Sven Giegold, parlamentar europeu pelos Verdes (citado pelo jornal Sueddeutsche Zeitung).
Não ficou claro o que quer dizer "um ajustamento no programa", mas dificilmente será a suavização da austeridade – falta marcar mais pontos para chegar aí. "Deverá ser o prolongamento da assistência", intepreta Filipe Garcia, economista da consultora IMF. Os mercados gostaram: os juros da dívida portuguesa caíram a pique em todos os prazos.
Lição #2. Merkel tem poder, mas não passa por cima do seu eleitorado
O governo alemão dita o curso dos acontecimentos no euro – mas está sujeito a fortes pressões internas, como ilustra a conversa entre os dois ministros. A acção do governo alemão na crise – a ênfase na austeridade e a resistência em emprestar dinheiro – é um espelho da evolução da maioria das vontades colectivas do eleitorado germânico.
"Parte importante da população é agitada por tablóides como o Bild, que retratam os países do sul como preguiçosos. A percepção dominante é de que o contribuinte alemão não deve financiar estes países, que vêem como infractores", comenta ao i um consultor de negócios alemão, que preferiu o anonimato.
A deterioração da crise na Grécia contribui para a hostilidade maior da opinião pública alemã contra um segundo resgate financeiro. Em 2010, as sondagens mostravam que a maioria não gostava dos resgates, mas que os considerava necessários. Uma sondagem publicada esta semana pelo instituto alemão Forsa revela que agora 53% dos inquiridos estão convencidos que o euro pode ser defendido sem a Grécia.
A Alemanha é a maior economia do euro e o principal contribuinte para os resgates financeiros. Com o desemprego no mínimo de 20 anos (5,5%) e uma economia a crescer (e a vender cada vez mais para a China), os eleitores e os seus representantes no Parlamento – a quem foi prometido, na lei, que o euro não implicaria transferências orçamentais para outros países – têm uma atitude mais dura face à crise do euro.
Em Berlim, como em Bruxelas, o descrédito das autoridades gregas é total (ver texto na página ao lado). Fonte sénior em Bruxelas, ouvida pelo i, indica que a Europa poderá deixar cair a Grécia depois de erguer uma muralha financeira para defender os restantes países do euro.
Portugal é o próximo na linha de fogo e pode beneficiar. Um segundo colapso no euro deitaria por terra a teoria vendida aos mercados de que a Grécia é uma excepção, ameaçando Espanha e Itália. Mas num jogo sem regras (ver a terceira lição) a regra é "ajudar o governo alemão que vai eleições em 2013 a ajudar-nos" – quem paga pode optar respeitar a opinião da maioria.
Lição #3. Numa União sem regras e governo, as regras são da Alemanha
A conversa entre Gaspar e Schäuble é um exemplo perfeito de uma união monetária que está longe de ser uma união política – não há um governo da zona euro, o que num contexto de crise amplia muito a projecção de poder entre estados da mesma união, bem visível na atitude de cada um dos ministros.
"Nesta Europa há uma hierarquia de potências – não há regras mas há quem faça as regras", ironiza o politólogo José Adelino Maltez. "Quando este sistema de Europa clandestina promove a criação de um Papademos em Atenas e de um Monti em Roma até nos podemos dar por satisfeitos por em Portugal ainda não ter sido imposta a substituição do primeiro-ministro", acrescenta.
O problema da hierarquização crescente – entre povos credores e devedores – é ampliado pelo vazio das instituições de governação europeia.
"Vítor Gaspar deveria estar a ter aquela conversa com o presidente de uma instituição europeia e não com um ministro alemão, que supostamente é seu par", sublinha Filipe Garcia, da consultora financeira IMF. "De um ponto de vista pragmático percebe-se a conversa, mas revela bem as deficiências da construção política europeia", acrescenta.
A crítica dos observadores ouvidos pelo i não é dirigida a Vítor Gaspar, embora ninguém tenha gostado de assistir ao contraste entre as atitude – uma conversa banal para Schäuble e crucial para Gaspar. "Ser dependente é gerir as dependências e Gaspar cumpriu a sua função de caixeiro viajante – meteu uma cunha ao ministro alemão por Portugal", aponta Adelino Maltez.
O problema está no efeito da crise da moeda única no equilíbrio entre os 17 países membros – sobretudo entre os países periféricos e os do Norte. A introdução do euro implicou uma partilha inicial de soberania, com regras impostas pela Alemanha. Com a crise, a partilha assumiu-se claramente como uma transferência de soberania para um eixo ditado pela Alemanha e por França – os maiores contribuintes para os pacotes de resgate – perante uma Comissão Europeia sem orçamento e esvaziada de poder. "A Europa não pode viver com este tipo de ambiente", alerta Adelino Maltez.
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